Os assassinos de Deus

Rick Warren, pastor de uma das maiores igrejas batistas americanas e líder de um ministério de alcance nacional e mundial, tinha um filho que sofria de dolorosos transtornos mentais, marcados com uma profunda depressão e tendências suicidas. Seu nome era Matthew. Aos 27 anos, elevou tragado pela morte.

Como explicou o pai, o menino foi tratado pelos melhores médicos americanos e teve remédios, conselheiros e orações por sua cura. Assim mesmo, "em que pese o melhor tratamento possível, a doença jamais foi completamente controlada, levando-lhe o sofrimento emocional à decisão de pôr cabo à sua vida". 1

De todos os cantos da terra, pessoas se associaram à dor da família. No entanto, ainda antes do sepultamento, Rick Warren, autor do best-seller mundial "Uma vida com propósitos", postou na internet (tweeter e facebook) o seguinte comentário:

"O luto  é difícil. Para as figuras públicas, o luto é mais difícil. Quando os inimigos festejam a sua dor, o luto é muito mais difícil". ("Grieving is hard. Grieving as public figures, harder. Grieving while haters celebrate your pain, hardest.").


A quem se referia Warren como inimigos ("haters", odiadores, no original). Outro pastor, Frank Viola, explicitou: eram os autores dos comentários sobre a morte do rapaz, como postados na internet.

Eis quatro desses comentários:

  "Treine seus filhos no caminho; viva uma vida santa com as prioridades certas; cuide bem dos deveres escolares apesar do grande sacrifício envolvido; não os deixe namorar desacompanhados; faça o culto doméstico todos os dias; desligue a televisão; TENHA UMA VIDA VERDADEIRA COM PROPÓSITOS e seus filhos NÃO COMETERÃO SUICÍDIO, nem se envolverão com homossexualidade ou com fornicação".

. "O pobre Matthew nega o amor de Deus com o suicídio".

. "Matthew foi vítima de sua ignorância e da ignorância de sua família, de seus amigos, da sociedade e dos cristãos em seu redor". 2

. "Rick Warren ensinou ao seu filho os caminhos deste mundo, mentiu sobre Deus e seus padrões e colheu o prêmio de sua loucura". 3

Fiquei estarrecido.
Naqueles mesmos dias, encontrei-me com um pastor, vivendo um agudo drama familiar. Seu filho, mais velho que Matthew, teve que abandonar os estudos, em que se preparava para o pastorado, e ser recolhido em casa, agora protegida com telas nas janelas. Os médicos disseram aos seus pais que ele não podia ficar um minuto sequer sozinho.
O pai me disse:

-- O que mais me doeu foram os comentários de que meu filho está envolvido com drogas.

Tive vontade de chorar.


Fiquei revoltado, diante da crueldade de pessoas, algumas que se dizem cristãs.

Com todas as letras, digo que essas pessoas não amam, nada entendendo sobre o amor de Deus para com todas as pessoas.

Numa hora destas, um pai precisa apenas de conforto. Por isto, saúdo os milhares que escreveram mensagens de condolências para a família Warren. Saúdo a igreja que, com ou outra exceção odiosa, apoia o pastor brasileiro que cuida do filho doente.

Com todas as letras, digo que as pessoas que aplicam "juízos divinos" sobre as outras não conhecem as Escrituras Sagradas. Também não conhecem o Deus das Escrituras Sagradas aqueles que afirmam, por exemplo, que os destinos de John Lennon ou dos Mamonas Assassinas foram selados por Deus, como castigo pelo que disseram e fizeram.
Em vídeos que circularam na rede mundial de computadores, pôde-se ouvir comentários deste tipo.

. Num, o pastor "explica" o assassinato de John Lennon, em 1980, com as seguintes palavras:  “Jesus não era pop star como ele, mas sim o mestre de uma grande religião. John Lennon estava olhando para as câmeras, dizendo: ‘Nós Beatles somos uma nova religião’. A minha Bíblia diz que Deus não recebe esse tipo de afronta e fica impune.”

. Noutro, o mesmo pastor "conta" como foi a morte do grupo musical Mamonas Assassinas, em 1996: “Ao invés de virar pra um lado, o manche tocou pra outro. Um anjo pôs o dedo no manche e Deus fulminou aqueles que tentaram colocar palavras torpes na boca das nossas crianças”.

Este tipo de reação é cometida por assassinos de Deus. Para preservar o conceito que têm da justiça divina, tornam-se seus aplicadores, como se tivessem autoridade para tanto.
Foi exatamente este tipo de gente que Jesus enfrentou bravamente durante todo o seu ministério. E foram estes justificeiros que o mataram.

O CEGO CURADO NUM DIA IMPRÓPRIO

O episódio que mais escancara o juízo real de Deus sobre estes carniceiros é o da cura de um cego de nascença, como lê,os em João 9.
Na cidade de Jerusalém ou em alguma cidadezinha próxima, havia um bem conhecido cego que vivia de esmolas. Tão conformado estava à sua condição, que não pediu por cura a Jesus, mas foi notado pelos seus discípulos. Na teologia da época, alguém era culpado de sua cegueira, porque -- criam -- as doenças são sempre o resultado de algum pecado humano.
Aplicava-se a regra teológica a um cego de nascença? Quando viram o mendigo, a teologia deles entrou em crise. Por isto, os discípulos perguntaram:

-- Mestre, quem pecou: este cego ou seus pais, para que ele nascesse cego?

Jesus respondeu que a cegueira dele não tinha o pecado como causa, mas que se prestava a que a glória de Deus ficasse demonstrada. E curou o cego, pedindo que fosse se lavar no tanque público de Siloé.
Em vez de ficarem felizes, seus vizinhos se mostraram curiosos e até mesmo furiosos. É como se perguntassem: "Como pode uma coisa ruim acontecer a uma pessoa boa? Como pode o filho de um pastor ter uma depressão incurável?"
Em lugar de se alegrar, eles começaram a fazer perguntas atrás de perguntas, como que duvidando do milagre que seus olhos registravam. No rígido esquema mental deles, aquele homem merecia ser cego e não podia ser curado.
Vasculhado, o homem contava sempre a mesma história, dizendo não conhecer quem o curara, o que era verdade, pois tinha recebido a ordem de ir se lavar no tanque e só então começou a ver, com Jesus já longe.
A teologia dos seus amigos entrou em crise. Um cego não pode ver.
Seus amigos foram procurar os teólogos, profissionais que podiam lhes explicar o que não conseguiam compreender.
Os fariseus estudaram o assunto. Eles não tinham como mudar os fatos: o homem não era mais cego. Os fariseus estudaram o assunto e condenaram a cura: a cura tinha acontecido no sábado e Jesus era um tremendo pecador, por ter curado no sábado. Deus não cura no sábado. Deus não quebra regras. As regras não podem ser quebradas, nem para matar a fome ou para salvar uma vida.
O argumento ficou logo desmascarado. Um homem que curava não era um pecador.
A saída foi negar a cura. Pressionaram os pais do rapaz, que saíram pela tangente, mas o rapaz não negou. Fora mesmo curado.
O argumento não funcionou. Interrogaram de novo o cego, em busca de alguma contradição. O cego se irritou:

-- Eu já lhes disse, e vocês não me deram ouvidos. Por que querem ouvir outra vez? Acaso vocês também querem ser discípulos dele?

Os teólogos "o insultaram e disseram:

-- Discípulo dele é você! Nós somos discípulos de Moisés! Sabemos que Deus falou a Moisés, mas, quanto a esse, nem sabemos de onde ele vem”.

O ex-cego lhes deu uma aula:

-- Ora, isso é extraordinário! Vocês não sabem de onde ele vem, contudo ele me abriu os olhos. Sabemos que Deus não ouve pecadores, mas ouve o homem que o teme e pratica a sua vontade. Ninguém jamais ouviu que os olhos de um cego de nascença tivessem sido abertos. Se esse homem não fosse de Deus, não poderia fazer coisa alguma.

Acabou expulso da sinagoga, por tanto atrevimento, tendo ele -- segundo a teologia vigente -- nascido "cheio de pecado".
Preocupado com o que podiam fazer com ele, Jesus foi procurá-lo. E o salvou pela segunda fez, primeiro da cegueira física e agora da cegueira espiritual. Ofereceu a mesma salvação aos fariseus, mas eles a recusaram.

ESQUEMAS DE MORTE

O que faltava às testemunhas da cura do cego?
Discutindo teologia, eles perderam o principal: deixaram de ver a glória de Deus em ação.
Presos em seus esquemas mentais, não se permitiram ouvir a voz de Deus.
Eles só viam o que queriam ver e Jesus curava.
Eles só aceitavam o que foram ensinados a aceitar e Jesus curava no sábado.
Se o amor de Deus quisesse se manifestar, tinha que ser dentro do esquema deles, não no esquema de Deus.

De onde vem este esquema que nega o amor de Deus em ação?

Vem da dificuldade de amar. Vem da dificuldade de desejar amar como Deus ama.

Vem de uma leitura distorcida da Palavra de Deus. Os fariseus liam a mesma Bíblia que Jesus lia: o Antigo Testamento, para nós. Eles não cuspiam no sábado, mas Jesus não só cuspia, como fazia lama com o seu cuspe, para curar um cego. Eles liam a mesma Bíblia. Eles liam para confirmar o que criam. Jesus lia para ensinar sobre o amor generoso de Deus. Eles liam para explicar as coisas como elas eram. Jesus lia para mudar as coisas no que deviam ser. Eles liam em busca de regras fixas. Jesus lia para mostrar que a vida é complexa. Eles liam para sufocar. Jesus lia para libertar. Eles liam para matar. Jesus lia para salvar. Eles liam versículos. Jesus lia a Bíblia toda. Eles faziam dela um chicote. Jesus fazia dela um bálsamo para a ferida. Eles liam para construir prisões. Jesus lia para erigir cabanas, sem portas e sem chaves.

O que têm esses homens do passado com os de hoje que fizeram tão mal aos dois pastores (Rick Warren e o outro, brasileiro), na hora dos seus dramas?
Em comum eles têm a hipocrisia. Dizem amar a Deus, mas odeiam os filhos de Deus.
A Bíblia, então, os chama de mentirosos: "Quem afirma estar na luz mas odeia seu irmão, continua nas trevas" (1 João 2.9). "Quem odeia seu irmão é assassino, e vocês sabem que nenhum assassino tem a vida eterna em si mesmo" (1 João 3.15). "Se alguém afirmar: 'Eu amo a Deus', mas odiar seu irmão, é mentiroso, pois quem não ama seu irmão, a quem vê, não pode amar a Deus, a quem não vê. Ele nos deu este mandamento: Quem ama a Deus, ame também seu irmão" (1 João 4.20-21).

Quando vemos Jesus curando o cego, deparamo-nos com um modelo a ser seguido. Jesus amou aquele homem. Ele poderia apenas falar sobre o amor aos discípulos olhando para o cego, mas ele preferiu mostrar o amor curando o doente.

Eu e você somos convidados a amar, como Jesus amou. 

Devemos pedir a Deus que nos ajude a amar com ele nos ama.

Devemos pedir a Deus que nos nos afaste de todo tipo de crueldade, sobretudo aquela que achamos fazer com boas intenções, como se estivéssemos defendendo Deus. Defender Deus pode ser uma ilusão que nos leva a assassiná-lo. Um jornalista ironizou o pastor (depois deputado) que fez o raio divino cair sobre John Lennon e os Mamonas: ele "fala de Deus com tanta convicção que a plateia fica tentada a acreditar que Ele não merecia existir". 4

O VALOR DO ESTUDO

Quando vemos os discípulos perguntando a Jesus, vemos um modelo a ser seguido. Eles procuraram saber. Eles pesquisaram. O gesto é um convite ao estudo.
Uma das desgraças do cristianismo é a ignorância. A ignorância traz uma visão reducionista da vida, como se tudo pudesse ser explicado com uma frase, de preferência uma frase feita.
Dou dois exemplos.

. Somos, por vezes, instruídos a perguntar, estando numa certa situação, a responder à seguinte pergunta: "Em seu lugar o que faria Jesus?". Sei que a sugestão pode ter sido útil a muita gente, mas temos que ser honestos. Nós nem sempre sabemos como Jesus faria, porque Jesus era surpreendente. O consolo é que podemos saber como Jesus fez e então nos guiar por suas ações.

. Somos ensinados, na hora da dor, a não perguntar "por que?", mas "para que?". Sei que a mudança de foco na pergunta pode confundir a muita gente consolada, mas temos que ser honestos: não há um "para que" para todas as tragédias da vida, porque muitas são apenas consequências de decisões humanas. Mesmo sem "para que", podemos saber que Deus está conosco nas situações para as quais não temos explicação.

Menciono um pensamento perigoso porque legalista e contrário à graça. É o da lei da semeadura: nós colhemos o que plantamos. Ela funciona, mas não funciona 100%. Paulo nos fala dela numa passagem (Gálatas 6.7), mas fala também da graça em inúmeras outras. Temos que considerar as duas. Há muito de linearidade (A produz B)  em nossas vidas. Quem estuda geralmente passa. Filhos amados serão geralmente adultos felizes. Quem obedece as leis do trânsito se envolve em poucos acidentes.

Por razões diversas, nem sempre quem estuda passa, porque pode passar mal no dia da prova ou ser suplantado por um fraudador. Filhos amados poderão ser adultos infelizes e revoltados até mesmo pelo excesso de amor recebido. Quem obedece as leis do trânsito pode ser envolvido num acidente por um bêbado irresponsável (e desculpe a redundância porque todo bêbado ao volante é um irresponsável).

Larry Crabb mostra que a lei da semeadura, na tradição de Moisés, busca as bênçãos de Deus, seguindo perseverantemente os princípios. A pressão é constante. Na vitória há um certo orgulho ("Olha os filhos que eu criei!"). O fracasso é muito possível.
Na lei da liberdade (ou da graça), na trilha de Jesus, a busca é pela proximidade com Deus. Os verbos são: pedir misericórdia, descobrir a graça e experimentar o descanso. Não há pressão. A vitória é festejada como graça, embora até tenhamos contribuído para ela, nem que seja orando. 5
 
Quando esta lei é aplicada retroativamente, as consequências emocionais são ainda mais graves. Foi o caso do cego de nascença. Ali estava a colheita. Qual foi a semente (qual foi o pecado)? Uma família tem um filho com problemas na polícia. Qual foi a semente: onde os pais falharam? Não necessariamente os pais falharam. Eles podem ter amado, ensinado e dado bons exemplos, mas o filho pôde ter escolhido o caminho do mal, por seu livre arbítrio. Encontrar culpados pode produzir culpados que são e culpados que não são.

No caso dos assassinos de Deus, acossando os Warren, eles aplicaram a lei da semeadura reversamente. Se o filho deles tinha depressão, os pais falharam. Rick Warren não lhe deu amor, nem atenção, nem lhe ensinou a Bíblia corretamente. O rapaz não tinha uma doença incurável. Assim, foi morto duas vezes. Foi até excluído dos céus, como se tivesse escolhido ter a mente enferma que tinha.

No meio cristão, a doença mental tem sido o território para o preconceito e para a perpetração dos crimes mais hediondos. Sem conhecer Matthew Warren, um anônimo brasileiro se dizendo cristão garantiu que o rapaz não era convertido e que estava possuído pelo demônio... 6 Há tempos não lua idiotice maior. Os ignorantes têm uma imensa necessidade de demonstrar o quanto são idiotas.

Há muitos doentes mentais cristãos sofrendo duas vezes. Sofrem a doença e sofrem a culpa. Sofrem a enfermidade e sofrem o abandono. Tomam seus remédios e os venenos do preconceito e da ignorância. E quando a ignorância vem dourada com um versículo bíblico, ela pode ser letal.

***

Temos que ser menos simplistas e estudar mais, para não negamos o amor de Deus aos que dele mais precisam, tal a sua carência.

Precisamos amar as pessoas em lugar de as classificar. Precisamos conhecer as pessoas em lugar de as deletar. Precisamos nos envolver com as pessoas em lugar de as ignorar.

Os fariseus não se preocuparam com o cego. Por eles, ele pediria esmola até morrer. Jesus curou o cego porque se envolveu com ele. Este deve ser o nosso caminho.

ISRAEL BELO DE AZEVEDO
Fonte: http://www.prazerdapalavra.com.br/mensagens/tematicas/6648-os-assassinos-de-deus-joao-9